terça-feira, 22 de abril de 2014

Três da manhã

- Lucas, Lucas, Lucas!!!
- O que houve mulher? O que você quer?
- Escuta... tem algo no quintal, vai ver o que é!
- O mulher são três da manhã... Já viu o frio que tá fazendo? Deve ser o vento...
- Deus do céu,  bem que meu pai disse que tava casando com um paspalho... acho que preciso ligar prum homem de verdade para ver o que é...
- Joana pelo amor de Deus,  são três horas da manhã...
- Por isso mesmo, nunca ouviu falar que é nesta hora que coisas estranhas acontecem?
- Tá bom mulher... vou ver o que é...
Nisso Lucas veste um casaco, coloca um boné e com a cara amassada de sono abre a porta de casa.
Pela janela Joana observa o marido se afastar na névoa da noite e aguarda aflita...
Chama Bisteca o cachorro bunda mole dela e aguarda.
Bisteca é um vira latas tão feio quanto medroso, ele espera mais aflito que ela.
- Oi Lucas... Não falei que viria te visitar?
- Você está louca! Assustou a minha esposa e poderia ser pior! Já pensou se ela te vê?
- Ai que seria bom. Pelo menos a trouxa deixaria de ser enganada.
- Camila, você é louca, louca, some daqui...
- Lucaaaaaaaaas!!!! - Grita de casa a já ansiosa Joana... Ela começa a se preocupar com o marido. E se fosse um assaltante. O que poderia acontecer? Coloca a coleira no Bisteca e decide, vai atrás do marido.
Cerca de cem metros longe de casa. Lucas falta apenas implorar para a mulher sumir.
- Por favor Camila... vai embora, imagina o escândalo. Imagina...
- Não vou antes de ganhar um beijo de cinema daqueles demorados!
- Camila sai daqui. Amanhã conversamos e te dou quantas dúzias de beijos quiser.
Os latidos tomam conta do lugar Bisteca munido da coragem que nunca teve busca pelo amado dono, pressente que ele está em perigo (como os animais são inteligentes).
Lucas empurra Camila para o bosque, onde podem ficar escondidos entre as árvores...
- LUCAAAAAAAAS! Você está aí! - Grita a já desesperada Joana.
Bisteca aponta a direção para a dona. Joana corre. E encontra atrás dos arbustos Um Lucas branco de susto, sozinho olhando para o matagal a frente dele. Ainda tremulo começa a falar:
- Joana! Você não sabe o susto que tomei. Tinham dois ladrões prestes a entrar em casa corri e assustei eles que fugiram para o matagal. Já passou da hora de nos mudarmos. Esse lugar está perigoso demais...
Joana olha orgulhosa para o marido e diante da culpa pelo risco que o colocou decide de uma vez por todas: "Tenho um marido muito bom. Devo ser melhor com ele... amanhã aviso o Jorjão que devemos terminar nosso caso, não é justo trair meu marido".
Já Lucas ainda assustado pensa enquanto o cachorro late para o matagal, supostamente vazio: "Essa foi por pouco, preciso de uma amante menos louca..."

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Dia qualquer

- E agora eles estão vindo?
- Não,  ainda não...
O som de cacetetes nos escudos, parecem trovões estrondosos.
Um som bestial.
Fabiana espera apreensiva... Não sabe o que fazer, nem mesmo para onde ir.
O filho de apenas nove anos espera com medo e pergunta a todo momento se eles já estão vindo.
Um vizinho mais estourado, joga o primeiro coquetel molotov.
O estampido da explosão é seguido de batidas mais aceleradas... A tensão aumenta.
Sargento Jorge Silva caminha do lado oposto. A seriedade militar do sargento Silva é inabalável, mas o Jorginho, nascido e criado na favela se sente tocado. Troca de lugar com os moradores.
Muitos PMs sentem no coração a mesma dor... mas hoje não tem Jorginho, Maicon ou Cleiton.
Hoje existem apenas patentes da maquina do Estado em busca de cumprir uma ordem judicial.
Hoje não tem sorriso, hoje não tem compaixão.
Na sala de casa, Alberto Medeiros, dono dos terrenos, sorri. Finalmente tomará o que é dele de direito. Ficou 30 anos parado. Até invadirem, mas é dele.
Carlos Manfredini, o juiz que deu a ordem de despejo, toma um copo de café, na padaria que frequenta no Jardins... Nem pensa mais na decisão tomada no dia anterior. Foram tantas...
Fabiana abraça Joaquim que grita. As bombas explodem... e hora de correr. Sargento Silva fraqueja, toma uma pedrada e sangra. O sangue assusta, incendeia. Ele levanta com ódio. "E hora de descer o pau".
As famílias correm. As crianças choram. Os idosos parecem perdidos em meio ao caos.
Quarenta minutos de ação. Seis feridos, entre eles um policial. 200 famílias sem casa. Reintegração completa.
O Estado oferece para estas famílias um auxílio aluguel, albergues aos montes. A dignidade é esquecida. O direito a moradia ignorado.
Mais uma manhã qualquer na cidade de São Paulo. Mais uma luta de povo contra povo.
Neste momento Milton Aguilar olha para a assessora Myrtes.
- Alguma novidade?
- Moradores de uma comunidade retomada pelo dono querem falar com o senhor. Dizem que há dez anos enquanto era vereador o senhor disse que poderiam ficar, que resolveria tudo e daria a posse da casa para eles.
- Pobre adora mentir. Agenda com dois deles para segunda que vem, esta semana não tenho tempo para "papagaiadas"...