sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Carcará

O sol é uma constante arranhando o céu e o chão rachado pelo calor e secura deste lugar.

Calangos correm apressados tentando se esconder entre as pedras, evitando virar comida do carcará, pássaro astuto e rápido, como deve ser quem vive no semi-árido nordestino.

A sede e o cansaço já fazem parte do meu dia neste trecho de estrada. Caminhos se repetem em momentos e locais diferentes.

Numa casinha, pequena e rosada está dona Eulália. A porta aberta, a TV alta, o cheiro de alfazema.

Velhinha cheirosa, com o terço na mão reza o Rosário de Nossa Senhora. Para, me olha e diz:

- Entra filho, sente do lado da Velha.

Puxo a cadeira e assisto ela terminar o ritual. A TV fica ainda mais alta ao entrar o comercial. Dona Eulália desliga o aparelho.

- Tá com fome filho? A velha tem bolacha e suco de caju.

Aceito o suco. Aquele perfume me faz lembrar outra velhinha. Termino e agradeço. Ainda tem muita caminhada pela frente.

Dona Eulália me diz para tomar cuidado e para aprender a ser como um carcará:

- O carcará voa livre, vê tudo de cima. Nunca vi errar um ataque. Mas só faz isso porque tem paciência de esperar a hora certa. Ouve essa velha...

sábado, 13 de setembro de 2014

Sanfoneiro

O céu logo escurecia... o dia se tornava noite no Sertão e aos poucos um vento fresco e gostoso trocava de lugar com o calor sufocante.

Seu Ernesto sentado numa cadeira de balanço me viu chegar de longe.

- Sente aqui moço. Messias vá buscar uma cadeira pro rapaz!

Ao me aproximar de seu Ernesto a cadeira já estava lá.

Me balancei na cadeira por alguns minutos. Seu Ernesto entrou em casa e voltou com dois copos de doce de leite.
Dizia que a mulher dele que fez.

Ao comer o doce falávamos sobre a noite no sertão e citei o quanto gostava de ouvir uma sanfona.

- Pois é? Tu gosta mesmo? Pois tenho uma la dentro. E não toco há bem uns dez anos...

Seu Ernesto pegou a sanfona e com um sorriso no rosto e os olhos brilhando começou a tocar.

Dona Eulália a esposa de seu Ernesto apareceu e fechou a cara. Parecia não gostar do que ouvia. Entrou rápido para casa.

O velho olhou para a platéia de apenas uma pessoa e disse em voz baixa:

- A velha fica brava, quando eu tocava chovia de mulher. Ela me fez prometer parar de tocar. Mas você foi a desculpa perfeita para poder tocar de novo!

O velho tocava, os olhos mareavam. Jovem ele voltava a ser e assim tocou a sanfona.

Ao final de cada música batia palmas e aos poucos a frente da casa de seu Ernesto enchia de gente.

Próximo da meia noite, mais de 20 pessoas ouviam dançavam e aplaudiam o velho sanfoneiro! Um senhorzinho com triangulo na mão gritava "Seu Ernesto voltou!"

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Dona Mazinha

Diante da terra seca, pés descalços caminham no chão de terra rachada.

A cidade possui um ar fresco em meio a quentura do Sertão.

Árvores desfolhadas, em praças desbotadas. Pessoas com sorrisos fáceis. A inocência gostosa de um povo simples, sofrido, mas feliz.

Por detrás do balcão o sorriso acanhado de uma pequena mulher. Seus mais de 60 anos são expressados pelas marcas fundas deste rosto de mulher madura.

O sorriso arranha a face e expressa de maneira sincera muita alegria por ter um forasteiro para conversar.

A conversa flui tranquilamente. Como é bom conhecer mundos diferentes. A mulher pergunta sobre a estrada, as histórias, o mundo externo.

Ela nunca saiu do Piauí. Dona Mazinha quer saber como é viver numa cidade rodeada de prédios e com tantos carros que chegam a entupir a rua.

Em meio a conversa, um caminhão pipa para na porta do barzinho de Dona Mazinha, um senhor de rosto vermelho e lençol por baixo do boné desce da boléia.

- Água??!!!

- Dois baldes moço!!

Dona Mazinha vai até ele e ajudo a levar a água para o balde maior no quintal dela.

- Água por aqui é só assim... de balde.
Volto para o balcão e como um pão de queijo enquanto tomo o gostoso café passado na hora.

Dona Mazinha ri das histórias que conto e conta causos do Sertão. Pouco tempo depois é hora de ir.

Me despeço e quando vou pagar a conta sou interrompido pela senhora já brava.

- Onde já se viu. Até parece que vou cobrar a conta de um amigo! Obrigado por ter vindo!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ponto de ônibus

Ponto de ônibus qualquer, numa cidade qualquer, por volta das 18 horas... Ponto lotado, a chuva chega a molhar até quem está debaixo do pequeno teto do local de espera.

Dona Eufrásia, com as sacolas espremidas entre o peito tenta evitar que os papéis molhem. Seu Genésio, com um mau-humor peculiar apenas enfeza a cara, enquanto a água cai do guarda-chuva de Mariana e molha as calças dele. "Por que raios esta imbecil abre o guarda-chuva", resmunga para dentro o irritado Genésio.

Josélia com um olhar perdido pensa apenas no namorado... Pedro se aperta entre ela e Rubens, tentando aproveitar a pequena brecha seca que resta do teto de proteção. A chuva aumenta... Rubens já está com todo o lado esquerdo do corpo molhado. Justo hoje ele tem encontro marcado com a Fabiana, a linda mulher por quem é apaixonado há muito tempo.

Rubens começa a calcular mentalmente o tempo que levaria para chegar em casa e trocar a camisa antes de se encontrar com a pretendida. "Bem, se o ônibus chegar nos próximos dez minutos, somado aos 50 do trajeto e ao caminho até em casa, devo chegar por volta das 19h30. Ainda devo me trocar e pegar um ônibus para o outro lado da cidade... chegaria as 21h30... Putz a peça começa as 20h30". Começa a se conformar com a blusa molhada e analisa o "plano b" comprar outra no shopping.

Finalmente um ônibus chega, mas com tamanha sutileza, capaz de causar um desastre. O busão joga muita água em todos que estão no ponto. 

Dona Eufrasia resignada, simplesmente larga os papéis da empresa que carregava e agora estavam em frangalhos e encharcados.

Seu Genésio, usa todo o repertório de palavrões que conhece... desde aquele com "P", até aquele com "Y" (deve existir um palavrão com "Y", em algum país!).

Mariana num golpe de rara habilidade tentou colocar o guarda-chuva a frente do corpo para se salvar, mas um jato de água vindo do alto, simplesmente destruiu a chapinha que a moça tentava defender bravamente com o guarda-chuva....

Josélia acorda do sonho encantado com o namorado e passa a pensar no que aquele "imbecil" estava fazendo que não foi buscá-la. Pedro escorrega nas poças e cai estatelado no chão... espirrando ainda mais lama na camisa do Rubens, que até chorava de desespero, lá se vai a grande chance que ele tanto esperava com Fabiana...

Todos entram no mesmo ônibus, mas seu Genésio fez questão de entrar por último, assim poderia passar o restante da viagem xingando o motorista. Dentro do ônibus, cerca de 60 pessoas molhadas se sentiam vingadas. "Obrigado seu Genésio"!