sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Carcará

O sol é uma constante arranhando o céu e o chão rachado pelo calor e secura deste lugar.

Calangos correm apressados tentando se esconder entre as pedras, evitando virar comida do carcará, pássaro astuto e rápido, como deve ser quem vive no semi-árido nordestino.

A sede e o cansaço já fazem parte do meu dia neste trecho de estrada. Caminhos se repetem em momentos e locais diferentes.

Numa casinha, pequena e rosada está dona Eulália. A porta aberta, a TV alta, o cheiro de alfazema.

Velhinha cheirosa, com o terço na mão reza o Rosário de Nossa Senhora. Para, me olha e diz:

- Entra filho, sente do lado da Velha.

Puxo a cadeira e assisto ela terminar o ritual. A TV fica ainda mais alta ao entrar o comercial. Dona Eulália desliga o aparelho.

- Tá com fome filho? A velha tem bolacha e suco de caju.

Aceito o suco. Aquele perfume me faz lembrar outra velhinha. Termino e agradeço. Ainda tem muita caminhada pela frente.

Dona Eulália me diz para tomar cuidado e para aprender a ser como um carcará:

- O carcará voa livre, vê tudo de cima. Nunca vi errar um ataque. Mas só faz isso porque tem paciência de esperar a hora certa. Ouve essa velha...

sábado, 13 de setembro de 2014

Sanfoneiro

O céu logo escurecia... o dia se tornava noite no Sertão e aos poucos um vento fresco e gostoso trocava de lugar com o calor sufocante.

Seu Ernesto sentado numa cadeira de balanço me viu chegar de longe.

- Sente aqui moço. Messias vá buscar uma cadeira pro rapaz!

Ao me aproximar de seu Ernesto a cadeira já estava lá.

Me balancei na cadeira por alguns minutos. Seu Ernesto entrou em casa e voltou com dois copos de doce de leite.
Dizia que a mulher dele que fez.

Ao comer o doce falávamos sobre a noite no sertão e citei o quanto gostava de ouvir uma sanfona.

- Pois é? Tu gosta mesmo? Pois tenho uma la dentro. E não toco há bem uns dez anos...

Seu Ernesto pegou a sanfona e com um sorriso no rosto e os olhos brilhando começou a tocar.

Dona Eulália a esposa de seu Ernesto apareceu e fechou a cara. Parecia não gostar do que ouvia. Entrou rápido para casa.

O velho olhou para a platéia de apenas uma pessoa e disse em voz baixa:

- A velha fica brava, quando eu tocava chovia de mulher. Ela me fez prometer parar de tocar. Mas você foi a desculpa perfeita para poder tocar de novo!

O velho tocava, os olhos mareavam. Jovem ele voltava a ser e assim tocou a sanfona.

Ao final de cada música batia palmas e aos poucos a frente da casa de seu Ernesto enchia de gente.

Próximo da meia noite, mais de 20 pessoas ouviam dançavam e aplaudiam o velho sanfoneiro! Um senhorzinho com triangulo na mão gritava "Seu Ernesto voltou!"

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Dona Mazinha

Diante da terra seca, pés descalços caminham no chão de terra rachada.

A cidade possui um ar fresco em meio a quentura do Sertão.

Árvores desfolhadas, em praças desbotadas. Pessoas com sorrisos fáceis. A inocência gostosa de um povo simples, sofrido, mas feliz.

Por detrás do balcão o sorriso acanhado de uma pequena mulher. Seus mais de 60 anos são expressados pelas marcas fundas deste rosto de mulher madura.

O sorriso arranha a face e expressa de maneira sincera muita alegria por ter um forasteiro para conversar.

A conversa flui tranquilamente. Como é bom conhecer mundos diferentes. A mulher pergunta sobre a estrada, as histórias, o mundo externo.

Ela nunca saiu do Piauí. Dona Mazinha quer saber como é viver numa cidade rodeada de prédios e com tantos carros que chegam a entupir a rua.

Em meio a conversa, um caminhão pipa para na porta do barzinho de Dona Mazinha, um senhor de rosto vermelho e lençol por baixo do boné desce da boléia.

- Água??!!!

- Dois baldes moço!!

Dona Mazinha vai até ele e ajudo a levar a água para o balde maior no quintal dela.

- Água por aqui é só assim... de balde.
Volto para o balcão e como um pão de queijo enquanto tomo o gostoso café passado na hora.

Dona Mazinha ri das histórias que conto e conta causos do Sertão. Pouco tempo depois é hora de ir.

Me despeço e quando vou pagar a conta sou interrompido pela senhora já brava.

- Onde já se viu. Até parece que vou cobrar a conta de um amigo! Obrigado por ter vindo!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ponto de ônibus

Ponto de ônibus qualquer, numa cidade qualquer, por volta das 18 horas... Ponto lotado, a chuva chega a molhar até quem está debaixo do pequeno teto do local de espera.

Dona Eufrásia, com as sacolas espremidas entre o peito tenta evitar que os papéis molhem. Seu Genésio, com um mau-humor peculiar apenas enfeza a cara, enquanto a água cai do guarda-chuva de Mariana e molha as calças dele. "Por que raios esta imbecil abre o guarda-chuva", resmunga para dentro o irritado Genésio.

Josélia com um olhar perdido pensa apenas no namorado... Pedro se aperta entre ela e Rubens, tentando aproveitar a pequena brecha seca que resta do teto de proteção. A chuva aumenta... Rubens já está com todo o lado esquerdo do corpo molhado. Justo hoje ele tem encontro marcado com a Fabiana, a linda mulher por quem é apaixonado há muito tempo.

Rubens começa a calcular mentalmente o tempo que levaria para chegar em casa e trocar a camisa antes de se encontrar com a pretendida. "Bem, se o ônibus chegar nos próximos dez minutos, somado aos 50 do trajeto e ao caminho até em casa, devo chegar por volta das 19h30. Ainda devo me trocar e pegar um ônibus para o outro lado da cidade... chegaria as 21h30... Putz a peça começa as 20h30". Começa a se conformar com a blusa molhada e analisa o "plano b" comprar outra no shopping.

Finalmente um ônibus chega, mas com tamanha sutileza, capaz de causar um desastre. O busão joga muita água em todos que estão no ponto. 

Dona Eufrasia resignada, simplesmente larga os papéis da empresa que carregava e agora estavam em frangalhos e encharcados.

Seu Genésio, usa todo o repertório de palavrões que conhece... desde aquele com "P", até aquele com "Y" (deve existir um palavrão com "Y", em algum país!).

Mariana num golpe de rara habilidade tentou colocar o guarda-chuva a frente do corpo para se salvar, mas um jato de água vindo do alto, simplesmente destruiu a chapinha que a moça tentava defender bravamente com o guarda-chuva....

Josélia acorda do sonho encantado com o namorado e passa a pensar no que aquele "imbecil" estava fazendo que não foi buscá-la. Pedro escorrega nas poças e cai estatelado no chão... espirrando ainda mais lama na camisa do Rubens, que até chorava de desespero, lá se vai a grande chance que ele tanto esperava com Fabiana...

Todos entram no mesmo ônibus, mas seu Genésio fez questão de entrar por último, assim poderia passar o restante da viagem xingando o motorista. Dentro do ônibus, cerca de 60 pessoas molhadas se sentiam vingadas. "Obrigado seu Genésio"!

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Passa

No simples toque do tempo
Vivência se torna saudade
Saudade traz a lembrança
Lembrança nos faz viver novamente
Um simples toque no tempo
Torna o novo velho
O presente em passado
O indestrutível em pedaços
Toque sutil do tempo
Quase imperceptível
surpreendente a inapelável ação
Nada é para sempre
Nada é impossível
Nada é indestrutível
E neste doido passar dos ponteiros
Onde os dias se sobrepõem
As memórias se acumulam
E se perdem
A vida renasce a cada novo sorriso
Revigora a cada nova esperança
Esperando pequenos momentos
Em busca de lembranças eternas
Pois se você não sente saudades,
de nada ou de ninguém
Significa que ainda não viveu verdadeiramente.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Só o amor

Imundas mãos dos que julgam
Imundas vidas dos que governam
Imundas ações dos que deviam proteger
Imundas noções do que se deveria fazer
Imundice sem igual
E ainda julgam o animal
Botam a culpa no bestial
Não se tocam que a imundice é humana
E essa maldade profana
Necessita de amor
Quero alvos sorrisos
Beijos e abraços
Ao mundo o amor
E se os imundos mundanos
Os ditos humanos
Quiserem me deter
Lhes ofereço meu sorriso
Lhes ofereço meu desprezo
E os mato com meu amor
Pois não há nada mais provocativo
Que um sorrido furtivo
De um coração tranquilo
Em meio a tentativa de pavor
Sorria, viva sorrindo
O que nos resta
É só o amor

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Corações secos

Carlos desceu da moto com as botas sujas da areia seca do sertão.
Queria ver de perto aquilo que o cercava. Moto parada no descanso, no canto do acostamento.
Ao redor o som sombrio do vazio causado pela fome. Na frente dele barracas... muitas barracas. Eram como tendas de um coro tão seco que estava prestes a rasgar.
Em cada barraca uma pessoa estendia as mãos em busca de uma moeda. Em busca de uma migalha.
O rosto daquela mulher impressionava. Era o rosto de sofrimento, de dor.
A fome não é uma realidade distante. A miséria é um mal muito próximo.
Numa barraca mais a frente três crianças. Todas com o semblante da falta de esperança.
A moto balança devido ao vento causado pelo caminhão que acabou de passar. O vento é seco, como o dia, como o futuro daquelas pessoas.
Na beira da estrada, um exército de pedintes. Um grupo de pessoas clamando por ajuda.
A estrada continua. Mas Carlos levará consigo na memória um pouco do chão seco daquela terra.
Sobe na moto e olha o painel. Pouca gasolina. Muito a percorrer. Deixa a bolacha e a garrafa de água que guardava na mochila e parte.
Caminhões param e deixam comida, água, dinheiro...
Mais a frente uma fazenda, o gado magro é o anúncio da morte proxima. O sertanejo senta diante do sol, próximo a cerca. Contempla a miséria que lhe espera.
De repente o inesperado. Carlos se assusta.
As gotas começam a cair. O chão recebe cada gota como o fruto da esperança. Carlos para a moto novamente. Olha pra trás e contempla a gritaria, criancas antes amoadas, pulam e sorriem...
Sorriso puro e inocente, lágrimas do céu que se transformam em pranto... cai mais chuva... o sertanejo se levanta. Olha pra cima parece ainda não acreditar.
Carlos fecha a viseira, ajeita a jaqueta e com as gotas de alegria batendo contra o corpo. Segue a estrada esburacada com um sorriso no rosto e mais paz no coração.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Mar revolto

Entre as águas turvas
De um mar revolto
Surge a onda derradeira
Com força descomunal
A onda imparável
Súbita, incontestável
A onda capaz de mudar tudo
Num simples toque magestoso
Sinto o cheiro do mar
Sinto o vento da grande onda
O vento que te puxa para o fundo
Antes da chuva de espuma
Que precede a grande força
E no mar do coração
Ante a revolta do imutável
Contra a mesmice do incontestável
Espero a onda derramar a furia
Espero o mar puxar pro fundo
Tudo aquilo que não quer
E derramar nas margens o novo
Enfim ver o mar em repouso
Onde as ondas são apenas adornos
Adormecidas, controladas
A espera de uma nova ressaca
Para tudo renovar.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Asas

Certo dia eu acordei com asas. Mergulhei da janela e pude voar. Senti o vento no meu rosto. Pude o mundo contemplar.

Com estas asas voei pra longe, descobri o infinito. Mergulhei em precipícios, sem medo de me machucar. Agradeci a Deus pelas asas, pelo dom de poder voar.

Eu voava com destino, mas sem saber onde iria chegar. Voava, não ao sabor do vento, voava para poder chegar.

Domei as minhas asas, usei-as para crescer, para ser mais rápido, para me destacar.

As asas tinham muitas utilidades. Já não sabia viver sem. Era um dom que tinha ganhado, mas ao ter asas, fiquei preguiçoso para andar.

Perdi o interesse do que era perto. Pois com asas, muito longe podia chegar.
Mas nem todos querem te ver feliz, muitos não queriam me ver voar. Me achavam uma aberração. Alguém que deviam parar.

Aparar as minhas asas. Era o que eles queriam fazer.

Certo dia me pegaram e fizeram questão de me torturar. Cortaram as minhas asas. Disseram que não poderia mais voar.

Sem asas e ferido. Pude apenas chorar, não confiava em mim. Não conseguia nem voar.

Até que um dia percebi, que as asas eram ilusão. O verdadeiro segredo para voar está no coração.

No parapeito me postei e todos passaram a olhar. "Vejam só aquele maluco, parece que vai se matar".

Apenas deixei meu corpo cair, o vento em meu rosto tocar, e mesmo sem asas físicas,  o sentimento me fez voar.

Libertando as asas do peito e de repente voltando a sonhar.

Mas se antes voava para chegar. Agora isso mudou, sinto vento no meu rosto, mas a vida me ensinou que o motivo para voar é simplesmente sair do chão. Voar apenas por voar.

Aos que tentarem me podar, apenas digo de coração, muitos são os que tem asas, mas poucos são os que tem a imaginação e o amor para sair do chão.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Mar

Suave toque do mar ao formar as ondas.

Ondas que quebram nas pedras ou se perdem no horizonte.

Mar que pouco a pouco alcança meus pés cravados na areia, sentado, apenas contemplando a suavidade dos movimentos, a violência da batida o barulho da água se movendo, a espuma se formando e o cheiro...

Ah o cheiro do mar, que se confunde com a areia molhada ao formar aquele doce aroma, que amo contemplar.

Mar que me acalma, me faz perceber que o movimento da vida é como o movimento das ondas, uma força contínua, que existe independente da nossa vontade, que existe independente da nossa força...

A força das águas incontroláveis trazem vida e destroem o concreto. O aparentemente indestrutível. Ondas quebram pedras, invadem países. Abalam estruturas. 

Ao mesmo tempo em que se tornam adornos em um horizonte praiano, obsessão aos surfistas. Ou simplesmente um calmante para quem observa.

Na imensidão do mar, me perco ao contemplar tamanha beleza. Sou puxado pela maré carregado ao fundo. Levado pelas ondas. E a cada novo movimento, deixo para trás as dores e incertezas, trazendo para as margens apenas o aprendizado e a beleza. No movimento de uma onda. Na imensidão do mar.

E como a areia, sou molhado pouco a pouco, as dores e as incertezas sempre voltam. Bem como a beleza e o aprendizado. Pois tudo faz parte desta imensidão de mar.

Mais uma onda se quebra nas pedras. A água respinga nas minhas pernas. O sol pouco a pouco desce do céu para se perder no fundo do mar, que começa a se incendiar. Pessoas caminham na areia. Mas vejo apenas o mar. Que continua seu movimento infinito. 

Olho para ele mas uma vez, molho meus cabelos com a água salgada e vou embora. Sentindo no meu coração o movimento da maré. 

domingo, 1 de junho de 2014

Estrada

Na estrada o tempo não para
O vento aumenta
Os dias ficam pra trás
Os caminhos se cruzam
As pessoas passam
As mentes se esvaziam
O mar fica longe
A saudade também
Na estrada onde os pés não alcançam
As vidas se calam
O mundo se vai
Fica apenas o cheiro do novo
O novo da vida
O sentimento de surpresa
A vontade de apenas estar
Sem querer chegar
Sem querer voltar
Apenas ir sem destino
Viver sem medo
Caminhar ao infinito
Que é o destino final
Desta estrada sem fim
Chamada de vida

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Despedidas...

E com os olhos verdes rajados de azul. Tocou com as mãos enrugadas nas minhas e disse. "Todo mundo vai um dia está chegando minha hora, fica tranquilo. Seu avô está lindo ao seu lado".

Como num passe de magia o Alzhaimer deu lugar a razão. Já não sabia se eu ou ela delirávamos. Apenas sei o que meu coração sentiu.

A vida é feita de momentos marcantes de encontros e despedidas. Muitas vezes despedidas dolorosas que jamais esquecemos.

Muitas vezes trata-se de algo surreal. Como por exemplo um homem declarado morto que volta por seis meses para se despedir de todos e fazer coisas importantes que não tinha feito antes. Coisa de filme né? Eu já vi.

A única certeza é que a vida é longa o suficiente para vivermos muitos encontros e despedidas, mas curta e cruel ao nos tirar as pessoas que amamos.

A cada dia vejo que mais importante é sempre o dia de hoje e aproveitar ao máximo a oportunidade de conhecer pessoas. De conhecer o mundo e de nos conhecermos.

Longe de mim a pretensão de querer ensinar alguém. Mas apenas pensei muito nos últimos dias sobre isso e gostaria de compartilhar: sendo o mundo um lugar de oportunidades e a vida uma oportunidade única para existência, por que reprimimos tanto nossos sentimentos e atitudes diante do mundo?

Afinal nunca sabemos quando será nossa despedida, mas temos a oportunidade de a cada novo dia nos conhecermos mais e conhecer novas pessoas,  novos olhares e pensamentos.

Muitas vezes sinto vontade de apenas viajar pelo mundo e descobrir além de lugares lindos novos mundos, afinal cada um de nós é único e um mundo a parte. Com toda a complexidade e engenharia celestial.

E a cada dia me surpreendo ao conhecer um mundo novo: "Meu amigo o maior problema do ser humano é o medo. Quando ele domina você, acaba fazendo com que perca todos os outros sentimentos,  inclusive o amor por si", palavras de sabedoria, que ouvi de um morador de rua, viciado em crack que conheci na fria noite de São Paulo.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Cama elástica

O menino sorria e pulava na cama elástica
O sorriso surgia a cada novo salto
A tristeza ficava para trás
A pobreza ficava para trás
A fome ficava para trás
As balas que ele vendia ficaram de lado
E ele chamou o irmão
E a cada novo pulo o sorriso se desenhava
Como um grito de felicidade por ser criança
A cada novo pulo a esperança de viver se renovava
E os braços ao ar se jogavam
Levados pelo vento da esperança
Em meio a selvageria da vida
Em meio a fome e desesperança
Ainda é possível
Ser apenas uma criança
Mesmo que por apenas alguns segundos
Mesmo que apenas esta noite
O sorriso deu lugar ao medo

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Caminho de casa

Seis horas da tarde em Santos. Algum dia de 1992... Era verão. E como de costume na cidade litorânea o calor persistia mesmo depois do sol ir embora.
Não se trata de um calor qualquer. Trata-se daquele vento úmido e quente que gruda no corpo. Tipico dia de calor santista.
Uma linda mulher de caracóis nos cabelos, magrela e com pouco mais de 20 anos carregava no colo um moleque pentelho de cachos claros e cabelos cumpridos com pouco mais de três anos.
Ele falava o tempo todo... parecia um papagaio rouco com aquela voz de criança pequena.
Hora de subir no ônibus lotado e partir para a Areia Branca, bairro da Zona Noroeste de Santos, cerca de uma hora de viagem.
Dentro do ônibus cheio, a mulher quase cai com criança e tudo.
Não adianta, o moleque quer o colo da mãe. Diante de tanta gente, tem medo de ser esquecido no ônibus.
Entre vários homens sentados nenhum levanta. O ato de cavalheirismo acaba partindo de uma mulher. Uma senhora que já deve ter passado pela mesma situação.
Agora, finalmente a mãe poderá descansar as pernas depois de um dia inteiro de trabalho. E o pequeno pentelho agora resolve cantar...
Finalmente eles chegam na Zona Noroeste. O menino começa a olhar para o pasteleiro... E sem saber se a mãe tem dinheiro ou não pede: "mãe me dá um pastel".
A mãe tem pouco dinheiro. Sabe que na verdade não poderia gastar com "besteiras", mas para. Pede o pastel e uma Coca Cola.
Não pede para ela. Apenas para o menino. E espera ele comer.
Hora de continuar o caminho de casa. Menino no colo e mais uma longa caminhada.
É... acho que desde sempre dei trabalho para minha mãe. Aquela mãe magrela de menos de vinte anos com caracóis nos cabelos e rostinho de menina.
A mãe que foi minha primeira chefe no comércio de empadas.
E principalmente o sorriso mais lindo e abraço mais gostoso que conheço!
Obrigado mãe por me aguentar mesmo sendo pentelho desde sempre. Por cada pastel que me deu. Pelo colo no caminho. E por nunca ter me esquecido no busão!
Para todas as mães do mundo. Feliz dia das mães!

terça-feira, 22 de abril de 2014

Três da manhã

- Lucas, Lucas, Lucas!!!
- O que houve mulher? O que você quer?
- Escuta... tem algo no quintal, vai ver o que é!
- O mulher são três da manhã... Já viu o frio que tá fazendo? Deve ser o vento...
- Deus do céu,  bem que meu pai disse que tava casando com um paspalho... acho que preciso ligar prum homem de verdade para ver o que é...
- Joana pelo amor de Deus,  são três horas da manhã...
- Por isso mesmo, nunca ouviu falar que é nesta hora que coisas estranhas acontecem?
- Tá bom mulher... vou ver o que é...
Nisso Lucas veste um casaco, coloca um boné e com a cara amassada de sono abre a porta de casa.
Pela janela Joana observa o marido se afastar na névoa da noite e aguarda aflita...
Chama Bisteca o cachorro bunda mole dela e aguarda.
Bisteca é um vira latas tão feio quanto medroso, ele espera mais aflito que ela.
- Oi Lucas... Não falei que viria te visitar?
- Você está louca! Assustou a minha esposa e poderia ser pior! Já pensou se ela te vê?
- Ai que seria bom. Pelo menos a trouxa deixaria de ser enganada.
- Camila, você é louca, louca, some daqui...
- Lucaaaaaaaaas!!!! - Grita de casa a já ansiosa Joana... Ela começa a se preocupar com o marido. E se fosse um assaltante. O que poderia acontecer? Coloca a coleira no Bisteca e decide, vai atrás do marido.
Cerca de cem metros longe de casa. Lucas falta apenas implorar para a mulher sumir.
- Por favor Camila... vai embora, imagina o escândalo. Imagina...
- Não vou antes de ganhar um beijo de cinema daqueles demorados!
- Camila sai daqui. Amanhã conversamos e te dou quantas dúzias de beijos quiser.
Os latidos tomam conta do lugar Bisteca munido da coragem que nunca teve busca pelo amado dono, pressente que ele está em perigo (como os animais são inteligentes).
Lucas empurra Camila para o bosque, onde podem ficar escondidos entre as árvores...
- LUCAAAAAAAAS! Você está aí! - Grita a já desesperada Joana.
Bisteca aponta a direção para a dona. Joana corre. E encontra atrás dos arbustos Um Lucas branco de susto, sozinho olhando para o matagal a frente dele. Ainda tremulo começa a falar:
- Joana! Você não sabe o susto que tomei. Tinham dois ladrões prestes a entrar em casa corri e assustei eles que fugiram para o matagal. Já passou da hora de nos mudarmos. Esse lugar está perigoso demais...
Joana olha orgulhosa para o marido e diante da culpa pelo risco que o colocou decide de uma vez por todas: "Tenho um marido muito bom. Devo ser melhor com ele... amanhã aviso o Jorjão que devemos terminar nosso caso, não é justo trair meu marido".
Já Lucas ainda assustado pensa enquanto o cachorro late para o matagal, supostamente vazio: "Essa foi por pouco, preciso de uma amante menos louca..."

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Dia qualquer

- E agora eles estão vindo?
- Não,  ainda não...
O som de cacetetes nos escudos, parecem trovões estrondosos.
Um som bestial.
Fabiana espera apreensiva... Não sabe o que fazer, nem mesmo para onde ir.
O filho de apenas nove anos espera com medo e pergunta a todo momento se eles já estão vindo.
Um vizinho mais estourado, joga o primeiro coquetel molotov.
O estampido da explosão é seguido de batidas mais aceleradas... A tensão aumenta.
Sargento Jorge Silva caminha do lado oposto. A seriedade militar do sargento Silva é inabalável, mas o Jorginho, nascido e criado na favela se sente tocado. Troca de lugar com os moradores.
Muitos PMs sentem no coração a mesma dor... mas hoje não tem Jorginho, Maicon ou Cleiton.
Hoje existem apenas patentes da maquina do Estado em busca de cumprir uma ordem judicial.
Hoje não tem sorriso, hoje não tem compaixão.
Na sala de casa, Alberto Medeiros, dono dos terrenos, sorri. Finalmente tomará o que é dele de direito. Ficou 30 anos parado. Até invadirem, mas é dele.
Carlos Manfredini, o juiz que deu a ordem de despejo, toma um copo de café, na padaria que frequenta no Jardins... Nem pensa mais na decisão tomada no dia anterior. Foram tantas...
Fabiana abraça Joaquim que grita. As bombas explodem... e hora de correr. Sargento Silva fraqueja, toma uma pedrada e sangra. O sangue assusta, incendeia. Ele levanta com ódio. "E hora de descer o pau".
As famílias correm. As crianças choram. Os idosos parecem perdidos em meio ao caos.
Quarenta minutos de ação. Seis feridos, entre eles um policial. 200 famílias sem casa. Reintegração completa.
O Estado oferece para estas famílias um auxílio aluguel, albergues aos montes. A dignidade é esquecida. O direito a moradia ignorado.
Mais uma manhã qualquer na cidade de São Paulo. Mais uma luta de povo contra povo.
Neste momento Milton Aguilar olha para a assessora Myrtes.
- Alguma novidade?
- Moradores de uma comunidade retomada pelo dono querem falar com o senhor. Dizem que há dez anos enquanto era vereador o senhor disse que poderiam ficar, que resolveria tudo e daria a posse da casa para eles.
- Pobre adora mentir. Agenda com dois deles para segunda que vem, esta semana não tenho tempo para "papagaiadas"...

segunda-feira, 31 de março de 2014

Amor ou ódio, do que é feito o brasileiro?

Roupa curta? Estupre!
Ladrão? Espanque!
Viciado? Mate!
Suspeito? Prenda!
Gay? Cure!

Política ruim? Que volte a ditadura!

Nos últimos meses estou realmente surpreso. Pensamentos dignos da idade das trevas tem povoado as redes sociais e grande parcela da sociedade brasileira.

Hoje o brasileiro está cada vez mais inclinado ao conservadorismo. Ao pensamento dominante. Sem perceber o povo está perdendo a chance de tomar posse daquilo que lhe pertence e lhe é mais valioso: a liberdade e as rédeas da própria vida.

Sinceramente,  onde está o amor? Chega a ser patético ver falsos cristãos criarem uma marcha em nome de valores que o próprio Jesus repudiaria.

O que dá o direito de odiar alguém?
Vamos pensar:
- Por que devemos estuprar uma mulher de roupas curtas?
No caso de homens que pensam assim, seria um meio de justificar a falta de capacidade de conquistar uma mulher que deseja?
No caso das mulheres que pensam assim, seria a insegurança diante de maridos infiéis e fúteis que se guiam apenas pelo corpo?

- Por que devemos espancar ladrões?
Por que ao invés disso não cobramos maior ação de políticos corruptos em prol de uma menor diferença social? Por que nos negamos a enxergar nossa juventude perdida, que será inevitavelmente nossa carrasca futura, vítimas de um sistema falido?

- Matemos os viciados, afinal são culpados pelo próprio erro!
E se o viciado for seu irmão, seu filho, seu pai? Por que não investir na conscientização anti-drogas, no combate ao narcotráfico?

- Prendamos todos os suspeitos, claro, afinal se existe alguma evidência devemos enjaular! Mas qual o preço disso? Quantos injustiçados com a vida desgraçada pela precipitação merecem sofrer pela nossa certeza de "justiça".

- Gays não devem existir, devemos curá-los! Por que?
Afinal quem somos nós para discutirmos o conceito de felicidade que não conhecemos? O que nos faz ter a pretensão de fazer com que todos pensem igual?

- E claro a solução contra a corrupção é a volta da ditadura militar!
Deus do céu, ao invés de lutarmos pela fim da corrupção, a começar pela nossa reforma individual, vamos trocar nossa liberdade e possibilidade de evolução social pela tirania de poucos.

Sinceramente qual a maior possibilidade de tornarmos nosso país melhor?

Pelo amor, ou pelo ódio?

Lembre-se a escolha é sua. Afinal, você é livre, ainda.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Triste fim...

Dezoito filhos, começa a loucura. Como buscar o alimento de todos eles?

"Hora de ir para a selva e correr o risco de morrer em meio a imensidão de monstros".

Ela caminha sem direção sendo levada pelo extinto. Sente apenas o aroma da refeição e seguindo os sentimentos mais vorazes vai atrás da sobrevivência.

Sai da pequena casa úmida e jogada ao relento. Escura, sofrida.

Escala montanhas e desvia de animais que adorariam devorá-la, por mais nojenta que possa parecer para nós.

Os obstáculos são tamanhos e tantos, mas as dezoito pequenas bocas sedentas por comida não a deixam desistir facilmente.

Desvia de grandes monstros que emanam vento, passa correndo por portais gigantes que quase a mataram. Ela continua. Não vai parar depois de ir tão longe.

Enxerga a sua frente uma pequena sacola aberta... Os restos de comida estão evidentes. É tudo o que ela precisa para alimentar toda a família, pensa em chamar os filhos, mas antes precisa ter a certeza de que o dono, que deixou aquela comida jogada, não vai voltar para protestar a posse.

Sofia olha para ela. Sente um asco que começa na coluna e se espalha até os braços. Os pelos arrepiam na medida que seu nojo aumenta.

Saca um chinelo, olha para aquela barata nojenta e resolve atacar. "Hora de acabar com este animal nojento".

A cada nova chinelada um grito, a barata desnorteada e com um pouco de comida na boca, corre, para tentar se salvar.

Mais uma chinelada, desta vez certeira. A barata sente o baque. Fica de costas, sofrendo. Enquanto aguarda o golpe de misericórdia pensa nos filhos.

Mais uma chinelada. Sofia atordoada chama pelo marido. Ele vem, para levar o animal embora e joga-lo privada abaixo.

Dezoito filhos órfãos vagam agora pela mesma selva, em busca da mesma comida desperdiçada, com a certeza de que serão esmagados pelo simples nojo daqueles que desperdiçam a comida e são a razão deles existirem.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Quem são os bichos?

Olhos vivos e límpidos, pedindo aprovação.

Um azul cativante, com listras esverdeadas.

Não se tratavam de olhos, mas de obras de arte. 

Mas como um quadro pendurado numa parede rachada, tais olhos estavam num rosto sujo, maltratado pelo tempo.

Destruídos pela vida, enlameados, sem sentimento. Eram olhos de fundos vermelhos.

Vermelhos de sofreguidão, vermelhos de dor, sem nenhuma paixão.

Vi estes olhos na cracolândia, num jovem rapaz. Que pedia uma moeda para poder sustentar o vício.

Trata-se de um de nós, vi o humano no bicho, tragado pela droga, vendido para o mal, jogado na sarjeta.

Lembro-me do que disse um morador de rua, numa matéria que eu fiz:

"O crack é o pão do inferno, feito com a farinha do mal, com muito açúcar para ficar gostoso, amaçado pelo capeta. Quando você fuma, alcança o céu em dez segundos e o inferno para o resto do dia até conseguir uma nova pedra".

Como lidar com o crack? Matar estes usuários moradores de rua, bater, humilhar?

Tudo isso já foi tentado e nem mesmo o carinho truculento oferecido pela PM surtiu efeito.

Nem mesmo a psicopoliticologia de jogar para baixo do tapete deu certo.

O projeto de "Braços Abertos" dará certo?

Sinceramente as chances são mínimas, mas algo me fez ter esperanças, assim como os olhos lindos daquele pobre usuário, o projeto faz com que se enxergue o humano, além do bicho. O ser além do zumbi.

Pois, por traz deste usuário existe um ser humano doente de idéias e de alma. Um homem, ou mulher triste e sem esperanças.

Ninguém quer ser um drogado, ninguém quer viver no vício. Trata-se apenas de uma lacuna preenchida no espaço vazio deixado pela vida, pela sociedade, por nós.

Matar, prender, bater no usuário é o mesmo que cortar a macieira por conta de uma maça com praga, onde se abre mão do todo para não ter o trabalho de resolver o problema.

Devemos olhar no fundo dos olhos destes usuários, enxergar os humanos e lutar contra a droga, não contra as pessoas, pois ao desumanizar um doente, nos tornamos mais doentes do que eles.






terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ralé

Ralé acorda na Macedônia, toma café na Caledônia e vem sorrir no Brasil, anda com uma meia de cada cor, um terno furado e a barba por fazer.

Tropeça nas calçadas, toma água pensando ser limonada e conversa com o cachorro imaginário antes de partir.

Sai de casa cantando, ao contrário, para ver se tem sentido. Conta listras das calçadas, observa as nuvens. Para e tenta sentir se consegue perceber o mundo girar.

Ralé, não tem carro, não tem casa, não tem mulher, vive de sonhos e de tudo o que quer.

Esquece o passado, ignora o futuro e vive o presente, vende idéias, contrabandeia o tempo e é acusado de homicídio contra a realidade.

A realidade foi morta por ele, qualquer dia destes, em que buscava algo que perdeu numa rua qualquer, de um tempo perdido, num dia esquisito, que não lembra qual é.

Ralé, não tem noção do tempo, não é entendido no emprego, nem por ninguém.

Vive preso na própria realidade, da fantasia que criou. Onde já é tão impossível, que se torna possível quando se quer acreditar...

Trata-se de uma realidade inventada, em meio a história nunca contada, que ninguém acredita.

Todos aqueles que vivem a dura realidade de um mundo sem sonhos odeiam Ralé, chamam ele de louco, de um ser sem pretensão, todos tem pena do pobre coitado, que vive ensimesmado, embasbacado, talvez até abobado...

Como pode tamanha infantilidade, solidão sofrida, sem demonstrar a dor.

Só porque Ralé tem o coração guardado, preso com cadeado, por medo de sofrer?

Porque se a realidade for a única opção de liberdade, talvez a prisão das idéias, seja um meio sincero de viver a imaginação.

Pois ao compartilhar com o mundo um pouco do que sente, Ralé percebe, que não nasceu para aqui não.

Ralé é um viajante de outro mundo, não deste canto imundo, em que odeiam a ilusão.

Pobres coitados dos inocentes que pensam que a realidade é a opção racional, talvez o mundo um dia perceba que nada tem graça sem imaginação.

E que a realidade é uma faca afiada, que se enfia na carne e ataca o coração, destruindo qualquer cadeado, mesmo que bem fechado, atacando a ilusão.

O mundo não foi feito pros loucos, por isso não são poucos os que vivem em vão.